terça-feira, fevereiro 16, 2010, posted by # 7 at 00:37
A estranha silhueta de um corpo curvado dobra a esquina, lentamente, cambaleante. Aproxima-se de mim, sem pressas, sem hesitação. Sinto que algo de mau se avizinha, um arrepio sobe-me pela espinha, fico tenso pela expectativa. 

Ostenta vestes negras, esta estranha figura que se avizinha do meu ser. Um longo e gasto manto negro, com um sinistro capuz a cobrir-lhe a cabeça. É uma mulher, concerteza. Ou um homem muito debilitado, dada a fraca figura que aparenta ter.
Arrasta o pé, ou a perna esquerda, como que se estivesse ferida. Agora que olho melhor, sim, deve estar ferida, pois observo um fino traço de líquido vermelho e espesso que teima em escorrer dessa mesma perna. Sangue, com toda a certeza.

Sinto que devo prosseguir com o meu caminho, afastar-me de tão estranho ser, mas não consigo. Algo inexplicável me obriga a permanecer imóvel neste canto frio em que me encontro, aguardando pelo inevitável encontro com tão macabra personagem.

No meio da escuridão que cobre o seu rosto, consigo vislumbrar um estranho e hipnotizante brilho, o brilho dos seus verdes olhos.
O som da sua perna deficiente a arrastar-se nas frias e húmidas pedras da calçada é cada vez mais presente, ensurdecedor mesmo, arrepiante.

Quando está bem perto de mim, pára, a um metro de distância, como que a observar, a avaliar.
Pergunto se precisa de ajuda, se tudo está bem. Silêncio.......silêncio é a minha resposta.

Apesar da estranheza, da sensação de perigo eminente, algo em mim apela à paz, ao conformismo, à aceitção. De quê? Não sei responder, explicar. 

Observo em câmara lenta, como que se estivesse sob o efeito de uma qualquer droga, enquanto uma brilhante e afiada lâmina se revela, vinda de trás das suas vestes negras. Fito-a nos olhos. Sim, é uma mulher, sem dúvida. Consigo ver-lhe a face, enrugada, desgastada pelo tempo. O corpo curvado corresponde perfeitamente ao rosto que agora observo, velho, feio, triste. Apenas os seus olhos verdes detém o vestígio do que antes foi jovem e imaculado.

A lâmina apresenta-se agora completa, imensa e magnânime, diante de mim. Apenas por breves instantes, pois segundos depois, sinto-a, fria e cruel, a penetrar-me, violando o meu corpo, retirando a vida que há em mim. E enquanto a lâmina entra em mim, olho naqueles verdes olhos e apercebo-me de que o corpo daquele estranho ser que me mata, deixou de ser curvo, velho. A sua face começa a apresentar traços definidos de uma jovem rapariga. Apenas os seus olhos se mantêm inalteráveis. Os seus verdes olhos, assassinos olhos, que me sugam a vitalidade, com tanta intensidade quanto a da lâmina que me trespassa.

Estranhamente sinto-me em paz, sinto tranquilidade como nunca antes havia sentido.
A beleza que se escondia por trás da velha carcaça liberta-me lentamente e eu agradeço.

Uma lágrima começa a escorrer e um sorriso é visível na minha face. 

Chegou a minha hora.
 
Emanuel Simoes

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