sábado, maio 15, 2010, posted by # 7 at 00:10
Saí à rua hoje. Mesmo estando o tempo chuvoso, ventoso e desagradável, para a maioria das pessoas.

Olhei-me no espelho e constatei que sou normal.Sorri por ser normal, por parecer normal.
Senti-me normal, ao sair de casa. Beijei a rugosa face do meu velho pai, disse-lhe que não esperasse por mim e parti, em direcção ao nada, para nada encontrar.

Apesar da chuva, a temperatura no exterior era amena, agradável. Percorri ruas e ruas, sem destino definido, sem local para onde ir. Apenas procurava alguma paz de espírito.
Mas, de repente, surgiste do meio do vazio, de repente, como que um raio fulminante que queima até à morte a sua vítima.
Os teus olhos azuis fitaram os meus e, ainda que por apenas alguns segundos, senti que me diziam algo. Passaste por mim sem abrandar o passo, mas a verdade é que, nos poucos segundos em que cruzámos olhares, muito se passou.

Parei subitamente. Não por querer, mas porque me senti obrigado a tal. Olhei para trás e observei os movimentos graciosos do teu corpo, enquanto proseguias o teu caminho.
Lembrei-me de ter olhado ao espeho antes de sair de casa e de me ter sentido tão normal.
Olhaste momentaneamente para trás, fitando-me novamente nos olhos. Esse azul, tão intenso, tão poderoso. Tomaste conta de mim. Libertaste o monstro, aquele que tanto me esforcei por esconder, por trancar definitivamente.

Senti-me impelido em seguir-te e, apesar de teres companhia, fi-lo, sem receio algum.
Alguns metros passados, voltaste a olhar para mim e, ao contrário do que eu esperava, não surgiu em ti qualquer expressão de medo ou receio. Antes pelo contrário, o teu sorriso atraíu-me, fez-me sentir quente por dentro, sentir que tenho importância.

Alterei a minha rota para que coincidisse com a tua. Segui-te sem fazer nada para esconder o facto e tu olhavas constantemente para mim, sorrindo timidamente, mas nunca demonstrando medo. Isso atraíu-me, mais que tudo. O não teres medo, não me receares, foi como que um afrodisíaco. Senti-me normal, outra vez.
Continuei, pela noite dentro, caminhando atrás de ti, como que se me guiasses à salvação que tanto precisava.

Até que paraste, olhaste-me nos olhos e senti esse azul a violar a minha alma, submetendo-a à tua vontade. Perguntaste-me se queria caminhar a teu lado, em vez de te seguir. Estranhamente, com toda a minha timidez, respondi prontamente que sim, que adoraria caminhar a teu lado.

Caminhámos juntos, lado a lado, em silêncio, sem conversas banais, fúteis e, ainda assim, eu sentia-me bem e sabia que também tu não estavas constrangida com o silêncio que emanava de ambos os nossos corpos. Apenas passos e um pouco da nossa respiração.
Andámos e andámos, até que me forças-te a parar e me beijaste. Tão doce, tão suave. Senti-me no céu, flutuando por entre as nuvens brancas que me acariciavam a face, quase tão macias como as tuas mãos.

Quando dei por mim, estávamos sós, num qualquer quarto de um hotel, motel, residencial, ou qualquer outro desses locais.
Estavas linda, apenas com um lençol a cobrir o teu lindo corpo, enquanto me olhavas com esses doces olhos azuis, esse azul hipnotizador que me levou a esse local. 
Fui à casa-de-banho passar a cara por água, enquanto ouvia a tua doce voz a dizer-me para não demorar. Olhei-me no espelho. Olhei e, mais uma vez, senti-me normal. Tantas vezes que me senti normal neste dia maravilhoso. Estarei curado? Serei realmente normal? 
Não sei a resposta. Apenas sei que me juntei a ti e nos juntámos de uma forma tão intensa que parecíamos ser uma só pessoa, um só corpo, uma só alma. Soube ali que eras a minha alma gémea, pois o teu olhar era celestial, doce, intrigante, dominador, hiptnotizador. Tu eras eu e eu era tu. Senti-me tão humano, tão normal.
Tão humano e tão normal, até que o meu reflexo surgiu numa colher de sobremesa, que tínhamos utilizado para comer doces morangos. A minha imagem distorcida pelas curvas da colher fez-me lembrar de quem realmente sou. Agarrei na colher, fixei os meus olhos ondulantes, reflectidos no objecto metálico e senti o ardor dentro de mim. Senti a realidade a apoderar-se do meu ser, a voz do meu pai, ao longe, a dizer que não sou normal. 

Segurei firmemente na colher, aproximei-me de ti e disse-te: "És tudo para mim.". 
Olhaste para mim, sorrindo e acariciando-me a face. Disseste que nunca esperaste que eu fosse tão querido.
Fiz força e enterrei a colher no teu olho esquerdo, fazendo-o saltar da órbita, mas sem danificá-lo em demasia, pois esse azul não é fácil de encontrar.
O sangue jorrou, espichou, sujando lençóis, chão, paredes. Tentaste gritar mas rapidamente abafei o som que tentavas emitir com uma ponta do lençol. Apertei-te o pescoço, enquanto te retirava os olhos.

Rapidamente o silêncio se instalou, ainda que o teu corpo ainda tremesse de quando em vez. O azul dos teus olhos era meu, a tua doçura seria eterna em mim, o teu toque seria para sempre lembrado. E o espelho, o espelho mentiu-me, mais uma vez. Fazendo-me crer que era normal, iludindo-me para que pensasse ser capaz de me conter.
Seguro agora o meu mais precioso tesouro, enquanto desmembro teu corpo, com tanto respeito e carinho quanto é possível. Tenho que te tirar daqui, meu amor, sem que ninguém veja.

A noite continua amena, enquanto te arrasto para o meu local de eleição. Felizmente ninguém anda nas ruas, a esta hora.

Mantenho comigo o meu tesouro, os meus tesouros, os teus azuis olhos.

"Filho, és tu?". "Sou sim, pai, vai dormir." "E então, correu-te bem a noite?". "Sim pai, conheci uma rapariga maravilhosa." "Vais voltar a vê-la, ou é mais uma daquelas que desaparecem?". "Vou voltar a vê-la, pai. Assim como vejo todas as outras. Agora vai dormir, meu pai. Descansa."

O espelho, o espelho mentiu-me, mais uma vez. O espelho iludiu-me e deixou que saísse à rua, mesmo sendo o animal que sou. O espelho tentou esconder o monstro que sou. O espelho mentiroso.
 
Emanuel Simoes

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