Hoje acordei e não me levantei. Pelo menos não durante duas horas e meia. Fixei o tecto e pensei bem se sairia da cama ou não. Afinal de contas, o dia ia ser igual a todos os outros. Aturar o patrão, gordo e estúpido, ouvir colegas de trabalho a reclamarem sobre as suas vidinhas insignificantes, voltar para casa ao fim do dia, quando já tudo é escuro e sombrio, comer os restos que encontro no frigorífico, enfim, o mesmo outra vez.
Estava na altura de "iluminar" um pouco a minha vida.
Posto isto, afinal resolvi levantar-me, mas não para seguir as mesmas pegadas lamacentas de sempre.
Vesti-me à altura da ocasião, pois decidi que esse seria o dia em que uma nova fase da minha vida teria início.
Liguei o carro e fui à estação de serviço atestar o depósito. Parei na pastelaria para beber um café e ler o jornal, na esperança que houvesse uma notícia do género de um meteorito que iria chocar com o planeta e aniquilar toda a raça humana, ou que um vírus mortal, criado num secreto laboratório subterrâneo na Serra Leoa se tinha espalhado e que não havia maneira possível de controlar a sua propagação, mas não, nada. Política, futebol, um GNR que matou um adolescente e um homem que esfaqueou a namorada por ciúmes. O normal de todos os dias.
Dei uma olhada na televisão, esperando ouvir alguma notícia de última hora me alegrasse o dia, mas estava a dar um daqueles programas da manhã, em que os velhotes se queixam, os pimbas cantam e as pessoas fingem que se preocupam.
Estranha raça, a humana. Se fizermos entrevistas às pessoas na rua, todas dizem se preocupar com os outros, ser bons e simpáticos, prestáveis e atenciosos. Depois seguem o seu caminho e na realidade comportam-se de maneira oposta ao que dizem ser.
Bem, mas enfim. Visto que a única coisa que me prendia naquele estabelecimento era o café que pedi e já o tinha bebido, pus-me a caminho. Não paguei. Para quê? Se chamarem a polícia, pela altura que eles atenderem ao pedido, já eu sou avô.
Dirigi-me a casa e depressa fui buscar as ferramentas necessárias para esvaziar o depósito do meu carro.
Na parte de trás da minha casa, o terreno não é tratado. Tem ervas grandes e secas, bandos de gatos percorrem aquele campo enquanto os putos cá do bairro correm e jogam à bola.
Putos ranhosos que em cada 5 palavras dizem 3 palavrões. Batem-se e confrontam-se por nada. Está nos genes, a violência. Sentimo-nos bem quando vemos outros a sofrer.
Costumam invadir o terreno por volta da 9 da manhã, fazem um intervalo entre a uma e as três e depois só de cá saem pelas sete da tarde. É uma espécie de horário laboral.
Isso deixa-me com bastante tempo para compor a minha obra prima.
Quando o último pirralho abandona o espaço, certifico-me de que ninguém mais me está a ver e inicio o meu plano.
À medida que a gasolina bate no chão, os gatos vão se afastando mas sem nunca abandonar o local. Esta espécie de bombas que comprei ao Tó cigano parecem funcionar à base de fósforos. Deverão funcionar. Pelo menos têm um aspecto ameaçador.
Quando termino fico receoso sobre se o plano dará resultado ou não. O cheiro a combusível é evidente, e embora os gatos não abandonem o seu local de eleição, temo que os putos não se aproximem.
Mas não. Os nojentos pirralhos devem ter os narizes entupidos de tanta nojeira que lhes entra pelas narinas. Nem dão por nada.
Observo-os. Penso sobre se a minha raça merece estar viva, merece respirar o ar que a natureza lhes fornece e que ela destrói constantemente. Rapidamente a resposta surge na minha mente, vermelha cor de vingança, negra cor de ódio. NÃO. Não merecemos o que nos é dado.
Lentamente acendo uma carteira de fósforos, largo-a e observo. Primeiro os gatos, com sons arrepiantes e ensurdecedores enquanto ardem em lindas labaredas dançarinas. Uns correm, outros ficam imediatamente petrificados. Depois centro a minha atenção nas bombas do Tó cigano. Não é que funcionam? E melhor que o esperado. As Explosões são intensas e violentas. Alguns dos fedelhos nem se apercebem do que se passa quando os seus membros são dilacerados pelo efeito devastador das explosões.
A princípio pensei que fosse ficar impressionado, mas cedo me apercebi que sou mais distorcido do que pensava. Dou por mim a sorrir. Um sorriso tão intenso que interrogo-me se estarei ou não ébrio. Mas não. Estou completamente sóbrio. Tão sóbrio quanto no dia que comprei esta caçadeira ao Zé chino, esse grande ícone da cultura bairrista. Indivíduo magro, arrogante e ganancioso, daqueles que o mundo está cheio, cujo único propósito na vida é enganar o próximo, de forma a obter algum lucro.
Então observo. Os gatos assam, as criancinhas ardem, torram, fritam, e quando alguma pensa que pode fugir ao meu pequeno inferno, o meu dedo aperta gentilmente (aperta e não carrega, como me ensinaram) o gatilho e as esperanças acabam. LINDO. Aquele acertei-lhe em cheio na cabeça. Hum, não é como nos filmes. O crânio a desfazer-se é bem mais complexo do que pensava. E o barulho, é estanho. Uma pancada violenta, como que uma parede a ser atingida por um martelo.
Ao fim de 15 a 20 minutos aparecem os primeiros carros da autoridade. Esses senhores tão dignamente vestidos que honram a postura da nossa sociedade. Chegam com ar de poderosos mas, ao primeiro tiro que ouvem, rastejam como os animais que são. Ridículo.
Pensei que ficasse nervoso com a sua chegada mas, afinal de contas, são só mais carne para o banquete. Se já desfiz crianças, não são estes dinossauros que me vão incutir moralidade.
Continuo a disparar indiscriminadamente até que deparo com o meu próprio reflexo na janela da minha casa. Ao contrário do que seria de esperar, tenho uma expressão morbidamente calma. Eu próprio me imaginava com dentes cerrados, baba a escorrer e aos gritos, mas não, pareço um cubo de gelo. E em vez de me assustar, essa percepção apenas me fortalece.
Atinjo um polícia e a seguir outro. Já não existem putos nem gatos. Tudo é negro e nauseabundo.
No meio de tantas explosões é fácil fugir para o sótão do prédio. Abandono o meu lar, para sempre. Não me detenho a olhar para o mobiliário, à procura de qualquer boa lembrança da minha existência, porque sei que nada me fará voltar atrás ou arrepender-me. Chegando ao sótão, retiro duas ou três telhas e entro no edifício ao lado.
Tão ignorantes estes agentes. Criam o perímetro de segurança no prédio e mais tarde, quando saio pela porta do outro ao lado, tratam-me como uma vítima inocente e dizem-me para me afastar e manter-me seguro. Quase rebento a rir, mas controlo-me.
Fugir seria fácil, mas não quero mais prolongar a minha agonia neste planeta.
Ah pois, esqueci-me de mencionar que também comprei esta "fusca" ao Zé chino. O gajo fez-me um desconto irrecusável pela compra das duas armas. E eu fui na conversa. Deixa lá, o gajo precisa da dose de cavalo para aguentar o dia.
Não percebo muito de armas, mas sei que tinha 4 a 5 balas no carregador. Não sei se é mesmo assim ou se o gajo me enganou, mas não importa.
Primeiro abati o meu vizinho de baixo que se encontrava a assistir ao massacre como se de um filme se tratasse.
Foi bonito de se ver. Mais uma vez, não foi como nos filmes. O buraco por onde entrou a bala ficou completamente queimado, tipo torrada esturricada, enquanto que do outro lado deu para ver pedaços de osso com miolo, numa osmose arrepiante digna de filmes de terror.
A seguir, e porque não tinha nada a perder, apontei ao primeiro senhor da autoridade que vi. Devia ser o chefe ou oficial ou o que quer que se chame a quem manda fazer e fica na retaguarda.
Mas ao invés de o alvejar, resolvi optar por algo mais melodramático, mais artístico. A arma a usar com esta importante personalidade teria de ser especial.
O ruído dos gritos e das chamas era tão intenso, que demorou uma eternidade até que alguém percebesse que o senhor chefe ou lá como é, tinha uma faca de pesca submarina enterrada nos rins.
Engraçada, a forma como aquela obesa figura se movia na tentativa vã de retirar o objecto que lhe causava tamanha agonia. O seu farto bigode a encher-se de sangue e saliva enquanto os sons que saíam da sua boca se assemelhavam a gargarejos de quem está a usar um qualquer produto de limpeza oral.
Dispensáveis eram os esguichos de sangue com os quais o senhor me sujou, mas talvez fosse um pequeno preço a pagar por todo o espectáculo a que tive o privilégio de assistir.
Quando finalmente as atenções se dirigiram a mim, já era tarde para o gordo. Aquele monte de banhas jazia sem vida a meus pés e eu, cada vez mais, sentia a vontade emergente de rir às gargalhadas.
Vocês não merecem viver. Vocês não merecem respirar. Se Deus existesse, aniquilar-vos-ia num piscar de olhos. Eu sou um de vocês. Eu não mereço viver.
Lembro-me de ouvir "QUIETO, LARGA A ARMA", mas para mim isso de nada valeu. O som do gatilho foi tão nítido que parecia uma melodia escrita especialmente para mim, naquele dia tão especial.
Senti o sabor do metal misturado com sangue, na boca, o ardor a invadir-me o corpo e caí, ainda olhei para as nuvens mas rapidamente chegou a escuridão. A reconfortante e agradável escuridão, amiga de tantos anos, confidente inigualável.
Ao contrário do que dizem, não vislumbrei a minha vida inteira a passar em ritmo acelerado. Apenas senti dormência, conforto, paz. Ainda consigo sentir uma lágrima a correr na minha face e apercebo-me de que sempre estive só. Ninguém sentirá a minha falta, ninguém chorará por mim.
Adeus mundo, não vou ter saudades tuas